O que seria um governo a temer?

Texto de Francisco Conde (sim, meu pai), primeiro publicado aqui.

O roteiro está traçado. Falta o golpe, seja no TSE, seja no Congresso. Na moita, de tocaia, esperando ansiosamente o momento. Estão nervosos pois não têm tudo o que querem, a falta de legitimidade anda a escapar-lhes da mão. Mas, como a história do lobo e do cordeiro, vão tentar com ou sem ela.

O que aconteceria depois?

1 – Deixar a inflação estourar para aplicar o receituário abaixo, sob a alegação de “que o PT escondia a inflação”.
2 – Elevação da taxa Selic “para conter a inflação” — culpa do PT. Com isso os rentistas (1% mais ricos) ganhariam fabulosas somas num curto espaço de tempo.
3 – Elevação do preço da gasolina e demais derivados para “reequilibrar a Petrobrás” — culpa do PT.
4 – Destroçar a CLT, para “tornar o país competitivo”, liberar a indústria, o comércio, “das amarras dos direitos trabalhistas” — culpa do PT.
5 – Com 6 meses de inflação alta, os salários dos trabalhadores, dos servidores públicos e aposentadorias (CLT e servidores públicos dos três níveis, federal, estadual e municipal) seriam reduzidos a metade.
6 – País em recessão, desemprego, corte nos programas sociais (Bolsa Família, Prouni, Minha Casa Minha Vida, Luz Para Todos, Farmácia Popular etc), nos investimentos públicos para “ajustar as contas desequilibradas deixadas pelo PT”. Abandono da obra de transposição do São Francisco e outras obras de infraestrutura e integração. Cortes nas encomendas na indústria naval e de suprimentos para a exploração do petróleo brasileiro, abrindo o mercado a “concorrência internacional” a la FHC.
7 – Queima das reservas internacionais comprando títulos podres (“tóxicos”, na denominação codificada do mercado) dos bancos europeus à beira de uma outra crise (Santander, Deutsche Bank e outros). Depois diriam que o mercado “reverteu as expectativas, que foram surpreendidos pela queda misteriosa do valor dos títulos bons”.
8 – Com reservas e caixa zerados, pediriam empréstimos emergenciais ao FMI, que os dariam sob condições duríssimas: a liberação do pre-sal, arrocho salarial permanente, desvalorização do câmbio, demissão de servidores públicos nos três níveis (federal, estadual e municipal), privatização da Caixa, BB, Valec, portos, aeroportos e o que mais tiver.
9 – Arrocho nos estados e municípios, constrangendo-os a aplicarem a réplica do receituário do FMI.
10- Aprovação de uma lei “Antiterrorismo”, permitindo prisão preventiva para averiguações por tempo indeterminado (Prisões de Guantánamo institucionalizadas), proibindo manifestações e concentrações consideradas (por eles) antinacionais.
11- Censura dissimulada e, se necessária explícita, às redes sociais, blogs, revistas, carros de som e todo meio de comunicação. A rede globo seria salva da falência via perdão disfarçado da sua dívida tributária (parcelamento longuíssimo, com taxas inferiores as da inflação, seguido de empréstimo do BNDES para “investimento”).

O emprego, a remuneração do trabalho, as proteções trabalhistas, sociais e individuais, a pequena indústria, o pequemo comércio, o setor de serviços, pequenos e médios agricultores, estariam reduzidas drasticamente, ao arbítrio do tirano do momento. Este seria feroz com qualquer oposição, manifestação reivindicatória, ao mesmo tempo que atenderia todos os reclamos do capital internacional (leia-se americano e europeu, nesta ordem), nacional (no que sobrar, e na ordem: financeiro primeiro, especulativo no específico, e produtivo na sobra da sobra).

Isto não é tudo. Mas basta para darmos um basta. Não ao golpe. Não ao entreguismo. Não a ruína do mercado interno.
Pela democracia. Pala soberania. Pela liberdade.

Conde vs. José Alencar (o ex-vice presidente, não o autor daqueles livros do séc. XIX, que é José DE Alencar).
Conde vs. José Alencar (o ex-vice presidente, não o autor daqueles livros do séc. XIX, que é José DE Alencar).

“EU ESTOU PROTEGENDO VOCÊ, SEU CALHORDA!”

Ao desabafar com grupo que o vaiava, diante de sua casa, o ex-governador e ex-ministro Ciro Gomes tinha razão: no Brasil, autoritarismo volta-se com frequência contra aqueles que o defendem; Ciro expressa o que acontece após a ruptura do Estado Democrático de Direito quando até o guarda da esquina sente-se investido de superpoderes.

Artigo de Ayrton Centeno, adaptado por Bruno Conde, dedicado a um surfista calhorda

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Dita no calor da hora, a frase dura de um possesso Ciro Gomes carrega um desaforo dos mais evidentes, tradicionais e utilizados para aquele momento em que a temperatura sobe e a cusparada retórica se projeta com sua missão de destratar. Era madrugada do dia 17 e um grupelho de jovens ululantes e disfuncionais fazia barulho diante da casa do ex-governador e ex-ministro de Itamar e Lula.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Mas, no caso, o mais importante não é o insulto saído da boca de um político notório pelo temperamento explosivo. Junto, traz um ensinamento sábio. Com sua validade confirmada pela história recente.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

A última vez que tal conselho deixou de ser ouvido custou 21 anos de ditadura ao Brasil.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Em 1964, no momento em que articulava o golpe contra Jango, o arquiconspirador Carlos Lacerda desconsiderou a possibilidade de reversão do que urdia. Embora sagaz, não imaginou que a usurpação de um presidente eleito, que parecia abrir-lhe o caminho para a presidência, viesse a ser, como foi, o começo do fim de suas próprias ambições presidenciais. Aos 50 anos, vivia o auge de sua carreira. Foi preso e cassado pelos novos inquilinos do poder que ajudou a implantar. Morreria em 1977 sem recuperar seus direitos políticos. Provavelmente lamentaria não ter sido admoestado – antes da vitória que se transformaria em derrocada – por um adversário mais atrevido que lhe dissesse nas fuças:

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Outro conspirador, Adhemar de Barros, também não ouviu a voz da razão. Ele e a mulher, Leonor, puxaram a edição paulista da Marcha da Família com Deus pela Liberdade. Também sonhava com o Planalto ao qual já fora duas vezes candidato. Seu problema era semelhante aos dos demais conjurados: falta de voto. Quando veio o golpe que pediu, Adhemar avisou: “Agora, caçaremos os comunistas por todos os lados do país”. Dono de cadeia de rádios e jornais que hoje compõem a Rede Bandeirantes, Adhemar levou uma rasteira do destino: foi caçado e cassado. A exemplo de Lacerda, morreu sem recuperar os direitos políticos.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

O mesmo aconteceu com parcela dos jornais embarcados na conspirata, caso do Correio da Manhã, o mais destemperado dos inimigos de Jango, que feneceu destroçado pela censura e a perseguição dos militares. Claro que isso não se aplica às Organizações Globo, que somente se viabilizaram como um dos maiores impérios de comunicação do mundo através de suas relações carnais com um governo de assassinos. Sem vacilar diante da mentira, quando o poder constitucional foi derrubado, O Globo proclamou na sua manchete de capa em 2 de abril de 1964: “Ressurge a democracia”. Para o Globo, a democracia golpeada era a ditadura, enquanto a ditadura que chegava era a democracia.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Quando o golpe deu seus primeiros vagidos, a Ordem dos Advogados do Brasil, através de seu conselho federal, correu a embalar aquele sinistro berço de renda negra. Enalteceu “os homens responsáveis desta terra” que baniram “o mal das conjuras comuno-sindicalistas”. E, paradoxalmente, o estupro se dera “sob a égide intocável do Estado do Direito”. Sob a mesma égide e de tal estado, em 27 de agosto de 1980, uma carta-bomba na sede da Ordem matou a secretária Lyda Monteiro da Silva, de 59 anos. A carta era dirigida ao presidente do conselho federal da Ordem, Eduardo Seabra Fagundes. Ocorre que, após apoiar a implosão da Constituição, a OAB percebera seu erro. E mudara.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

O Supremo, para vergonha dos pósteros, agiu igual. Sob o pitoresco olhar do STF, tudo estava em seu lugar: o golpe era legítimo, a democracia estava preservada e a constituição idem. Seu presidente, Álvaro Moutinho da Costa, saudou o general Castello Branco em visita à corte. Porém, após o AI-5, três ministros, os mais independentes, foram aposentados compulsoriamente.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Filha de coronel do Exército, a adolescente Sônia Moraes foi levada pelo pai e a mãe à versão carioca da marcha da família com deus pela liberdade. Era 1964 e os Moraes festejavam a queda do governo constitucional. O tempo passou, o regime mostrou seus dentes e Sônia desapareceu. Engajara-se na luta armada contra a ditadura. Presa, teve os seios arrancados e foi chacinada até a morte. Desesperado, o pai procuraria durante anos pela filha. Um dia recebeu um presente sem sentido, enviado pelo seu desafeto, o general Adyr Fiúza de Castro, comandante do DOI-Codi, no Rio. Era um cassetete da Polícia do Exército. Descobriria depois que aquilo representava uma advertência e um escárnio. Com aquele cassetete sua filha, Sônia Maria de Moraes Angel Jones, fora estuprada antes de morrer em suplicio.

– Eu estou protegendo você, seu calhorda!

Talvez da explosão de Ciro fique mais o destempero do que o aviso. Mas é este que conta e tudo resume. Não é o mandato de Dilma que está em jogo. Quando a comandante suprema das forças armadas é grampeada, o recado é sucinto: ninguém está livre, hoje foi ela, amanhã serão vocês. Por isso, a violência ilegal, absurda e flagrante que se abate sobre a atual e o ex-presidente é apenas uma fachada. Atrás dela vem o estado de exceção. Quando diz ao aprendiz de fascista “Eu estou protegendo você, seu filho da puta!”, Ciro expressa o que acontece após a ruptura do Estado Democrático de Direito quando até o guarda da esquina sente-se investido de superpoderes.

Como imensos contingentes da militância golpista limitam seu vocabulário a meia dúzia de chavões e não sabem bem o que estão fazendo ali e a História mostra que o que está acontecendo é somente um revival dos tempos de 1954 e de 1964, e tem muito a lhes ensinar, talvez a melhor resposta ao rancor não seja a de Ciro mas a do ministro Jaques Wagner. Aborrecido num restaurante com o glossário golpista de um cidadão que o importunava, reagiu de maneira sintética: “Vá estudar!” Estudo é uma arma de exterminar fascistas. E ainda poderemos dizer a quem seguir a sugestão: “Estamos protegendo você”.

Vai, pode falar, pode escrever
Eu vou me entregar
No meu lugar, quem não faria?

Diz que é loucura, diz que é besteira, mas eu não vou ligar
Não tente entender
E o tempo dirá
A sina é sonhar
Que eu pago pra ver
Qual meu lugar
Que a vida é um dia
Um dia sem culpa
Um dia que passa aonde a gente está

Ah, se eu tenho tanto a perder
Eu perco é o medo do que a sorte lê
Sabe o que quer
Sabe quem tem o que se quer

Diz que é loucura, diz que é besteira, mas eu não vou ligar
Não tente entender
E o tempo dirá
A sina é sonhar
Eu pago pra ver qual o meu lugar
Que a vida é um dia
Um dia sem culpa
Um dia que passa aonde a gente está

Ah, se eu tenho tanto a perder
Eu perco é o medo do que a sorte lê
Sabe o que quer
Sabe quem tem o que se quer